No noroeste paulista, duas instituições privadas estudam a área em linhas diversas para tratar coração e rins
SÃO PAULO - Às 7 horas de uma terça-feira, o tratorista Ezequiel P. parou a soma de dez, que fazia a pedido do médico, ali pelo número três. Anestesiado da cintura para baixo e sedado, ele estava adormecido, pronto para, ao longo dos 45 minutos seguintes, ter o quadril perfurado, parte da medula óssea (cerca de cem mililitros) extraída e processada no laboratório de terapia celular.
Cirurgião mostra local do coração onde células são aplicadas - Ao meio-dia, Ezequiel recebeu uma infusão de suas próprias células-tronco, em doses lentamente injetadas de até 20 mililitros, por meio de um cateter, sonda fina, preparada para chegar ao coração pela artéria coronária. Volumes e ritmo dependem, a rigor, do quadro revelado pela câmera digital. "O alvo é atingir a maior parte possível do músculo cardíaco", explica o cirurgião José Luiz Balthazar Jacob.
No começo da tarde, o tratorista seguiu para a UTI para 24 horas em observação. Dois dias depois estava em casa. Se tudo der certo, sua vida terá ganho 69% de novas chances, a média dos casos bem-sucedidos. Ezequiel P. sofre de uma forma avançada de doença, "uma coisa que faz o coração ficar mole", como ele define o mal de Chagas, que o levou à condição final. As células-tronco aplicadas podem melhorar o quadro ruim de sua saúde.
Parte da medula óssea é extraída e processada - O procedimento está incorporado à rotina do Instituto de Moléstias Cardiovasculares (IMC) de São José do Rio Preto, a 440 quilômetros de São Paulo, desde abril de 2005. A instituição é privada, mantém pesquisa científica na área de células-tronco com recursos próprios e em parceria com o Ministério da Saúde. O IMC trata de 112 pacientes, um número alto de homens e mulheres, todos portadores de miocardiopatias - moléstias que provocam a dilatação do coração ou, ainda, as isquemias.
Os casos estão separados em dois grupos. Um, de 24 pacientes, incluídos no programa oficial do governo, de acordo com o protocolo que fixa as condições de triagem, entre as quais a constatação de que todos os recursos terapêuticos foram esgotados, só restando a opção experimental das células-tronco. E outro, de 88 doentes, "selecionados e assumidos pelo IMC entre cerca de mil casos", segundo o médico Oswaldo Grecco, diretor da instituição e responsável pelas atividades de terapia celular. "O sujeito chega aqui e pede o tratamento. Está no limite das normas do ministério e já tentou de tudo. Atendemos."
Pacientes têm melhora significativa na qualidade de vida - O processo, segundo Grecco, é linear: as células-tronco infundidas "aderem ao tecido do coração comprometido e gradativamente promovem a recuperação". A demonstração é evidente nas imagens de corpo inteiro, obtidas por cintilografia, pouco após a aplicação. Para o cirurgião Balthazar Jacob, "é possível ver o fluxo de células-tronco aderindo ao tecido, embora o restante do material seja captado depois pelo fígado e pelo baço". O especialista considera que as células-tronco mononucleares "são atraídas pelas zonas inflamadas".
O rim do rato - Bem perto do IMC, outra organização privada, a Braile Biomédica, realiza pesquisas em linha diversa. Em uma instalação operada em conjunto com a Faculdade de Medicina de Rio Preto (Famerp), cinco ratinhos de laboratório levaram as biólogas Rosa Kawasaki Oyama, Ana Paula Lima de Oliveira e Heloisa Caldas a uma pequena festa no fim do ano.
O motivo: em dois dos animais, nos quais foi provocada insuficiência renal e nos quais foram realizados transplantes de células-tronco colhidas da medula óssea, "surgiu um tecido com características de rim primitivo - resta saber se ele crescerá como tal e se será funcional", sustenta o urologista Mário Abbud Filho, diretor do Departamento de Nefrologia e chefe do Serviço de Transplantes Renais da Famerp. Na fase seguinte, o time da bióloga Ana Paula Oliveira terá pela frente um ciclo de três meses - termina em abril - para definir o momento em que o tecido que, afirma, "tem aspecto sugestivo de um rim", começa a se formar. A melhor aposta é a que indica um espaço entre 45 dias e três meses.
Não é só. A Braile, que integra o programa de células-tronco do Ministério da Saúde, investiga um modelo baseado no pericárdio (saco fibroso que envolve o coração) bovino. A empresa tem experiência no setor, fabrica e exporta válvulas cardíacas artificiais feitas com essa matéria-prima para 25 países há pelo menos 25 anos.
O experimento está focado em uma tecnologia que permite remover as células do pericárdio e, em seguida, tomando o tecido como uma espécie de suporte ou gabarito, promover o repovoamento com as células-tronco do receptor, "induzindo a formação, por exemplo, de uma nova válvula produzida de tal forma que será biologicamente igual ao recebedor".
Mesmo com poucos recursos oficiais, as entidades privadas seguem em frente nas pesquisas com células-tronco, em busca de resultados para doenças terminais.
Fonte: O Estado de S. Paulo